A proximidade do inverno europeu e a profunda crise energética do continente, agravada pelo corte quase total de fornecimento de gás natural pela Rússia neste mês, têm levado a Europa a repensar suas políticas de energia verde.
Recentemente, a União Europeia votou pela manutenção da energia nuclear em sua taxonomia de fontes sustentáveis — uma lista de atividades econômicas consideradas alinhadas com o projeto de transição da UE para a neutralidade climática. O bloco também enfrenta um embate interno relacionado à queima de madeira como fonte de eletricidade. Enquanto o Parlamento Europeu votou pelo fim de incentivos públicos para a prática e a redução gradual da modalidade na contagem das metas de energia renovável, Estados membros protestam sobre o impacto negativo do corte do subsídio madeireiro.
Mirando o fim da dependência dos combustíveis fósseis russos, a UE quer expandir o uso de energia renovável e, assim, acelerar a chamada transição verde. Na última quarta-feira (14), os eurodeputados votaram a favor de que, até 2030, 45% da energia do bloco venha de fontes renováveis. Eles também foram a favor do fim dos subsídios para a “biomassa lenhosa primária” (árvores saudáveis cortadas para combustível), mas desagradaram ativistas ao não estabelecerem datas para a diminuição do uso da madeira e ao serem contrários à eliminação total dessa forma de geração de energia. Segundo a proposta do Parlamento, árvores cortadas por segurança rodoviária ou proteção contra incêndios podem continuar se beneficiando de subsídios destinados às energias renováveis.
Desflorestamento
A madeira é, atualmente, a maior fonte de energia renovável da Europa, superando com larga margem a geração eólica e solar. E há evidências de que o objetivo de mitigação de mudanças climáticas pretendido por esse meio não está sendo alcançado. No ano passado, a agência de pesquisa científica da União Europeia apontou que a queima da madeira emite mais dióxido de carbono que a dos combustíveis fósseis.
Recentemente, um documento da Agência de Investigação Ambiental (EIA, na sigla em inglês), que tem sede nos EUA, em colaboração com o Greenpeace Romênia, mostrou que florestas protegidas da Europa Oriental estão sendo transformadas em pellets de madeira para aquecimento. O estudo lançou mão de mapas, dados oficiais e investigação em campo, como o rastreamento de toras de mais de um século saindo de florestas e chegando a uma fábrica que fornece pellets a clientes na Itália, França e Polônia.
Conforme a EIA, cerca de 40% da madeira que sai das florestas romenas advém de áreas protegidas. “As pessoas compram pellets de madeira pensando que isso é uma escolha sustentável, mas na realidade estão favorecendo a destruição das últimas florestas naturais da Europa”, disse David Gehl, membro da Agência, ao jornal New York Times. Segundo a publicação, na Hungria, por exemplo, as regras de conservação foram derrubadas pelo governo, no último mês, para permitir a exploração de madeira em florestas antigas.
No início do ano passado, mais de 500 cientistas escreveram uma carta, pedindo aos líderes europeus e mundiais que acabassem com os subsídios para a queima de madeira. “Houve um movimento equivocado de cortar árvores inteiras ou desviar grandes porções de madeira do caule para bioenergia, liberando carbono que, de outra forma, ficaria preso nas florestas”, afirma o documento. “As árvores são mais valiosas vivas do que mortas, tanto para o clima quanto para a biodiversidade”, completa.
Na votação desta semana, os eurodeputados decidiram pela redução gradual dos subsídios, mas rejeitaram a eliminação completa da queima vegetal. Caso a UE deixasse de considerar a energia obtida da queima da madeira como neutra em carbono, muitos países se distanciariam das agressivas metas de energias renováveis do bloco. Na Itália, por exemplo, maior consumidora de pellets do continente, mais de dois terços da energia renovável consumida vem da queima vegetal e há deduções de impostos para a compra de fogões a pellets. Outros países oferecem isenções parecidas e incentivos para produtores de madeira.
O New York Times relatou que documentos internos da UE mostravam uma forte pressão de países nórdicos e centro-europeus pela continuidade dos subsídios madeireiros. Neles, a Letônia alertaria sobre um “possível impacto negativo sobre o investimento e os negócios” e a Dinamarca teria argumentado que esse tipo de decisão deveria ser competência dos governos nacionais.
Segundo a Comissão Europeia, a UE gastou 13 bilhões de dólares em subsídios à bioenergia em 2020; contra 17 bilhões no ano anterior. As ONGs alegam que a maior parte desse montante vai para usinas de lenha.
Antes da votação do Parlamento acerca do tema, a Bioenergy Europe, associação do setor, publicou comunicado afirmando que restrições nesse sentido “irão aumentar os preços e aumentar a pobreza energética porque, no curto prazo, a bioenergia sustentável só pode ser substituída por gás natural e carvão, mais caros” na Europa.
A reabilitação da energia nuclear
A crise energética da Europa também serviu como uma virada de mesa para a energia nuclear. Em maio, o Partido Verde da Finlândia protagonizou uma mudança histórica de posicionamento, ao votar pela adoção de uma postura pró-nuclear em sua reunião nacional.
O manifesto do partido, primeiro entre os verdes a adotar a posição, passa a afirmar que a energia nuclear é “energia sustentável”, exigindo uma reforma na legislação energética vigente para agilizar o processo de aprovação de pequenos reatores modulares (SMR, da sigla em inglês). “Este é um momento histórico na história do movimento verde, pois somos o primeiro partido verde do mundo a abandonar oficialmente o antinuclearismo”, comemorou Tea Törmänen, que participou da conferência como membro votante.
Em julho, o Parlamento Europeu decidiu rotular os investimentos em energia nuclear como verdes, o que, para especialistas, marca um avanço na transição energética e na segurança do bloco. Caso não haja oposição do Conselho, o Ato Delegado de Taxonomia da UE entra em vigor em 1 de janeiro de 2023. Isso significa que, a partir desta data, a energia nuclear, até então demonizada por ambientalistas, poderá acessar o mercado de investimentos sustentáveis. “Rotular a energia nuclear como verde é a indicação mais clara deste crescente consenso em torno da energia nuclear na UE”, opina Timur Tillyaev, um investidor internacional em energia renovável.
“A potencial injeção de capital deve abrir caminho para inovações no setor, ajudando os países a produzir energia nuclear mais segura, eficiente e acessível em maior escala. Isso, por sua vez, ajudará a UE a deixar de depender de combustíveis fósseis e, especialmente, do gás russo. Evidências sugerem que as inovações na tecnologia nuclear devem ajudar a reduzir drasticamente o custo e o tempo necessários para construir novos reatores”, completa.
De acordo com a Associação Nuclear Mundial (WNA, na sigla em inglês), há cerca de 440 reatores nucleares comerciais em operação em 30 países, com 390 gigawatts (GW) de capacidade instalada. Somente no ano passado, essa fonte gerou 2.553 terawatts/hora (TWh) de energia, atendendo cerca de 10% da demanda global de eletricidade (um terawatt/hora é o consumo anual estimado de uma população de 150 mil pessoas na Europa, o montante gerado, portanto, foi suficiente para abastecer quase 400 milhões de europeus). Além disso, outros 55 reatores estão em construção. Mais de 50 países operam em torno de 220 reatores de pesquisa, e 180 reatores nucleares alimentam por volta de 140 navios e submarinos.
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Dados da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) apontam que o país com mais reatores é o EUA, onde há 93. A França é a líder na Europa, com 56 reatores. Em seguida, aparece a China, com 54. A Rússia tem 38 reatores e o Japão, 33. O ranking tem ainda Coreia do Sul (24), Índia (23), Canadá (19), Ucrânia (15) e Reino Unido (11). Já a Alemanha se afastou completamente da energia nuclear, depois da tragédia de Fukushima, em 2011, quando um terremoto atingiu uma usina nuclear na cidade japonesa, matando 18 mil pessoas e forçando a saída de 160 mil moradores da região. No início deste ano, três dos seis reatores alemães ainda em funcionamento foram desativados.
Depois de longa data investindo em uma política de segurança energética, a França obtém 70% de sua eletricidade da energia nuclear. Em fevereiro, o país anunciou planos de construir seis novos reatores e considera investir em mais oito. Segundo a WNA, o custo de geração baixo faz da França o maior exportador líquido de eletricidade do mundo, com um faturamento de US$ 3 bilhões por ano. Cerca de 17% da eletricidade francesa advém de combustível nuclear reciclado.
Um levantamento da WNA mostra que 40% das emissões de CO2 relacionadas a energia são decorrentes da queima de combustíveis fósseis. Já a fissão nuclear não produz gases de efeito estufa. As emissões ocorrem indiretamente, durante a construção da usina, o mesmo que ocorre com a geração renovável. Segundo o relatório, em todo seu ciclo, a energia nuclear produz uma quantidade equivalente de CO2 por unidade de eletricidade à energia eólica, e um terço do emitido pela solar (considerando todo o ciclo, desde fabricação de placas, etc.).
De acordo com Hannah Richie, a PhD em Geociências, todas as fontes de energia têm efeitos negativos, que vão desde poluição do ar, acidentes e emissão de gases de efeito estufa. Ela afirma que “as energias nucleares e renováveis são muito, muito mais seguras do que os combustíveis fósseis”.
“Nossas percepções sobre a segurança da energia nuclear são fortemente influenciadas por dois acidentes: Chernobyl, na Ucrânia, em 1986, e Fukushima, no Japão, em 2011. Foram eventos trágicos. No entanto, em comparação com os milhões que morrem de combustíveis fósseis todos os anos, o número final de mortes foi muito baixo”, defende.
Para ilustrar, ela usa o exemplo hipotético de uma cidade de 150 mil habitantes na União Europeia, que consome um terawatt-hora de eletricidade por ano, e toma como base uma estimativa de mortes por unidade de eletricidade. Se a cidade fosse totalmente movida a carvão, o esperado é que pelo menos 25 habitantes morreriam prematuramente a cada ano pela poluição do ar. No caso do uso exclusivo de petróleo, seriam 18 mortos; gás resultaria em três mortes; energia elétrica em uma. No caso da energia eólica, ninguém morreria em um ano normal. A taxa de mortalidade é de 0,04 mortes por terawatt-hora. Isso “significa que a cada 25 anos uma única pessoa morreria”. No caso da energia nuclear, apenas a cada 33 anos alguém morreria. E na solar esse período se estenderia para 50 anos.
“A boa notícia é que não há conflito entre as fontes de energia mais seguras no curto prazo e as menos prejudiciais ao clima no longo prazo”, comemora. “Infelizmente, o mix global de eletricidade ainda é dominado por combustíveis fósseis: carvão, petróleo e gás respondem por cerca de 60%. Se quisermos parar as mudanças climáticas, temos uma grande oportunidade à nossa frente: podemos fazer a transição para as energias nucleares e renováveis, e também reduzir as mortes por acidentes e a poluição do ar como efeito colateral”, completa Richie.
UE propõe intervenção no setor
Diante da crescente ameaça de racionamento e de apagão durante o inverno que se aproxima, a Comissão Europeia também trabalha em propostas de uma “intervenção de emergência” para o mercado de eletricidade. As ideias, publicadas na quarta-feira, incluem retirar receitas de companhias geradoras de eletricidade de baixo custo, além do compartilhamento de lucros inesperados por parte de empresas de combustíveis fósseis.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, justificou que a “contribuição de crise” por parte do setor, devido aos seus “enormes lucros”, deve resultar em uma arrecadação de mais de 140 bilhões de dólares. O montante será “para os Estados membros amortecerem o golpe diretamente”, protegendo o consumidor do aumento dos preços. “Nestes tempos, os lucros devem ser compartilhados e canalizados para aqueles que mais precisam”, afirmou.
O projeto pede, ainda, uma meta obrigatória de corte de consumo de eletricidade nos países, como forma de garantir que a Europa tenha combustível na estação mais fria. Segundo von der Leyen, a Comissão autorizaria auxílios estatais temporários a empresas europeias, como forma de equilibrar os efeitos dos mercados de energia voláteis.
Outro ponto que está sendo analisado e que dividiu opiniões é o teto para o preço do gás. Uma revisão do texto discutido pelos Estados membros é esperada para os próximos dias. Os ministros de energia da UE devem debater as propostas da Comissão em 30 de setembro.
O plano de Bruxelas tem recebido críticas por parte da indústria e dos Estados membros. Representantes de setores de uso mais intensivo de energia, como a produção de alumínio e aço, defendem que as medidas são insuficientes para aliviar a alta de preços que levou à falências de grandes proporções na indústria. A European Aluminium, um órgão de comércio, sugeriu, por exemplo, que parte dos impostos inesperados deveria ir para indústrias críticas.
As diferenças nacionais também devem ser um entrave a um acordo sobre as propostas. Com um mercado de eletricidade liberalizado, a Holanda teria dificuldade de cobrar uma taxa sobre geradores de energia de baixo custo (que não usam gás). Já Luxemburgo, Lituânia e Letônia, que não têm geradores e importam eletricidade, alertaram que não receberão receitas de emergência, a não ser que sejam compartilhadas por países vizinhos.
Boa parte dos 27 membros da UE também querem que o corte proposto na demanda de eletricidade (fixado em 5% do uso em horários de pico) não seja obrigatório, mas voluntário. Outros são contra a possibilidade de mais regulamentação.
Na França, a operadora RTE declarou que não há risco de apagão total, mas não descartou cortes de energia em horários de pico para reduzir a demanda. “Como último recurso, interrupções de corte de carga organizadas, temporárias e rotativas podem ser ativadas para evitar um incidente generalizado”, afirmou, em comunicado reproduzido pela agência de notícias Reuters. O governo francês também disse que vai limitar os aumentos nos preços de energia residencial a 15% no início de 2023.
Fonte: Gazeta do Povo