A pretensão brasileira de ter um submarino nuclear, que já consumiu bilhões de reais em 43 anos, enfrenta agora um de seus maiores desafios: obter o aval internacional para o uso do combustível da embarcação, evitando assim o risco de sofrer sanções pelo temor de proliferação atômica.
No dia 6 de junho, o Brasil fez um pedido formal à AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica, ligada à ONU) para negociar um pacote de salvaguardas com o objetivo de empregar urânio enriquecido no reator do submarino —cujo protótipo começou a ser construído em 2021 pela Marinha, em Iperó (SP).
A negociação é altamente complexa por estabelecer um precedente inédito: um país sem armas nucleares empregando combustível atômico para fins militares —o que sempre gera a preocupação de usos diversos. A Folha ouviu de diplomatas com trânsito na agência, em Viena, que dificilmente tal autorização ocorrerá sem que o Brasil ceda em algumas posições históricas.
Para que os chamados Procedimentos Especiais, o dito aval, sejam aprovados, quase certamente será necessário estabelecer um novo marco jurídico na forma de um protocolo adicional entre Brasil e AIEA para garantir a inspeção das instalações que lidam com o combustível e do reator do submarino.
Ocorre que Brasília sempre resistiu à adesão aos Protocolos Adicionais ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, da qual é signatária, por considerá-los uma forma de tutela das potências atômicas, o que gerou uma pequena crise nos anos 2000, quando a AIEA quis saber mais sobre as ultracentrífugas brasileiras.
Esses equipamentos são os responsáveis pelo enriquecimento do urânio e estrelam o noticiário da crise com o programa nuclear do Irã há anos. A confusão no Brasil foi contornada, mas até hoje a AIEA demanda a adesão do país aos Protocolos Adicionais modelados em 1997 —138 países e a agência europeia do setor os assinaram.
Isso já foi defendido por seu ativo diretor-geral, o argentino Rafael Grossi, em entrevista recente à Folha. A reportagem o procurou para falar sobre a negociação atual, mas ele estava em viagem e não pôde responder. A delegação brasileira na agência não respondeu ao pedido de contato.
A questão do submarino nuclear é uma nova oportunidade para colocar o bode na sala. De acordo com pessoas próximas ao assunto, o Brasil aceitaria colocar seu programa militar nuclear sob um guarda-chuva específico de salvaguardas, talvez utilizando mecanismos já existentes no Abacc, o acordo com a Argentina e a AIEA de inspeções mútuas. No Itamaraty, contudo, há, além do temor de que a exigência seja mais ampla, a determinação inicial de não ceder.
“A ausência de um protocolo adicional deverá ser vista como incompatível com o fato de o Brasil ter um programa militar”, afirmou Ian Stewart, especialista britânico em submarinos nucleares do James Martin Center (EUA), em texto sobre o tema no “Boletim dos Cientistas Atômicos”.
A negociação é altamente complexa e se insere no contexto da Guerra Fria 2.0 devido ao caso da Austrália. Em 10 de março, a AIEA foi informada oficialmente dos termos do acordo conhecido como Aukus, entre o país da Oceania, os EUA e o Reino Unido.
Anunciado em 2021 como uma reação à assertividade chinesa no Indo-Pacífico, o Aukus tem como peça central um arranjo para que, em 18 meses, seja estabelecida uma forma de prover a Austrália com submarinos lançadores de armas convencionais, mas de propulsão nuclear. Pequim, claro, não gostou.
Como uma das sete potências nucleares oficiais, a China tem assento no comitê gestor de 35 membros da AIEA e já questionou abertamente como será o manuseio do combustível nuclear pela Austrália. Isso porque os modelos americanos e britânicos de submarinos, que deverão ser vendidos para Camberra, usam urânio com grau maior de enriquecimento do que no caso previsto para o Brasil, por exemplo.
Naturalmente, é tudo política. Pequim não quer ver a Austrália navegando barcos furtivos em seu quintal estratégico, e isso diferencia o caso do brasileiro. Como nunca enfrentou tal negociação, contudo, a AIEA pode ao fim encontrar uma solução que englobe ambos os pedidos.
A negociação é mais uma etapa do caríssimo calvário do submarino nuclear brasileiro, que já tem até nome: Álvaro Alberto, em homenagem ao almirante pai do programa do setor. Ele é um desejo dos militares desde o começo do projeto nuclear da Marinha, em 1979, e virou sua peça central após o país abandonar a ideia de ter a bomba atômica.
Em 2009, a assinatura do acordo militar Brasil-França deu nova vida ao programa. Ele destinava € 2 bilhões ao modelo nuclear, dentro de um pacote de € 6,75 bilhões que previa transferência tecnológica, construção de estaleiro e montagem de quatro submarinos de propulsão diesel-elétrica adaptados da classe Scorpène.
Em valores corrigidos, o programa todo já gastou quase R$ 30 bilhões até 2021. Só a rubrica do Álvaro Alberto havia previsto R$ 475 milhões para este ano, embora a execução tenha sofrido restrições diversas vezes ao longo dos anos. Isso, segundo a alegação de militares, levou a atrasos diversos: a embarcação só deve chegar ao mar no fim da década de 2030, talvez 15 anos depois do prazo estimado.
Há questões diversas de ordem técnica, também: é um produto complexo, e os franceses vão transferir a capacidade de integrar o reator nuclear ao casco do submarino. Apenas EUA, Rússia, China, França, Reino Unido e Índia operam esse tipo de armamento.
Como a Folha mostrou em março, o Brasil tem tido dificuldades para certificar o combustível que pretende usar. O país domina o ciclo de enriquecimento de urânio, mas não faz todo o processo por aqui. Assim, após ter a certeza de que os EUA não iriam ajudá-lo na tarefa, o governo voltou-se para uma fornecedora polêmica: a Rússia.
Durante sua controversa visita a Vladimir Putin, em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro (PL) buscou abrir negociações sobre uma cooperação para obter tecnologia de combustível nuclear em Moscou. A Guerra da Ucrânia, iniciada uma semana depois, colocou um freio no processo.
Fonte: Folha de S. Paulo