Na corrida para zerar emissões, energia nuclear volta ao debate energético

Alvo de controvérsia mundial há quase 70 anos, quando o presidente americano Eisenhower propôs, em discurso na Organização das Nações Unidas (ONU), o programa atômico pela paz, a energia nuclear retorna à pauta internacional como uma alternativa para produzir eletricidade em escala sem comprometer os compromissos ambientais de descarbonização e diversos países do mundo, inclusive o Brasil, retomam programas nucleares.

Recentemente a União Europeia incluiu a geração nuclear na definição de energia verde –– o que para os críticos pode significar menos recurso orientado para fontes renováveis como solar e eólica. Cerca de um quarto da energia do velho continente atualmente tem origem nuclear, e apesar do rótulo de “verde”, as nações continuam divididas sobre qual papel ela deve ou não desempenhar na transição energética e na redução da dependência europeia do petróleo e gás russos.

Entre os que são contra o uso da energia nuclear, a Alemanha lidera. O país decidiu eliminar gradualmente suas usinas após a tragédia de Fukushima em 2011, no Japão, um dos maiores desastres nucleares da história, e está aumentando sua capacidade de energia renovável com novas instalações solares e eólicas para tentar compensar a perda de energia nuclear.

Enquanto isso, grandes emergentes, como a China e a Índia, aceleram os projetos de ampliação do parque energético numa investida de transição a economia de baixo carbono que contempla a fonte nuclear. O Brasil é outro nessa lista. A energia atômica entrou novamente na pauta do governo, seja para planejar o futuro, seja para resolver pendências — o país tem o desafio de finalizar a construção de Angra 3 (1.405 MW), em Angra dos Reis (RJ), que se arrasta desde 1984 e é marcada por escândalos de corrupção. A expectativa é que o projeto inicie a operação comercial em novembro de 2027.

No médio prazo, o Plano Decenal de Energia (PDE 2031) prevê a construção de uma quarta usina nuclear nos próximos dez anos. Caso a planta saia do papel, o governo prevê que ela terá 1 gigawatt (GW) de capacidade instalada, com início de operação em 2031. Se tudo correr como previsto, a capacidade instalada de geração de energia nuclear no Brasil deve crescer dos atuais 1.990 MW para 4.395 MW em 2031. A usina deverá ser instalada no Sudeste em local a ser definido.

Obras de Angra 3:  marcadas por escândalo de corrupção, obras se arrastam desde 1984. — Foto: Divulgação Eletronuclear
Obras de Angra 3: marcadas por escândalo de corrupção, obras se arrastam desde 1984. — Foto: Divulgação Eletronuclear

Nos cálculos da Associação Brasileira de Energia Nuclear (Aben), uma nova usina deste porte vai exigir um aporte em torno de US$ 5 bilhões. No entanto, o investimento se justificaria pela segurança energética, segundo seus apoiadores. “A fonte nuclear gera muita energia, tem um fator de capacidade superior a 90% e, diferente de outras fontes renováveis, é uma energia firme e contínua”, diz o presidente da entidade, Carlos Mariz.

O dirigente apresenta argumentos sobre a segurança energética e emissões e diz que a energia atômica emite 15 vezes menos CO2 que as centrais a carvão. “Não há quase nenhuma emissão de gases de efeito estufa, o que é fundamental não só para evitar o aquecimento global, mas sobretudo por questões de doenças cardiorrespiratórias”. De acordo com informações do Plano Nacional de Energia (PNE 2050), a energia nuclear é responsável por 10% da produção global de energia elétrica e é a segunda maior fonte de energia de baixo carbono no mundo͕ atrás apenas da hidroeletricidade.

O professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), Nivalde de Castro, lembra que a decisão do Ministério de Minas e Energia (MME) sobre a construção de uma quarta usina faz parte da política energética brasileira firmada no Conselho Nacional de Planejamento Energético (CNPE) para diversificar a matriz “investindo em um tipo de geração que é mais confiável, porque independe de intermitência e sazonalidade”.

Apesar de mais cara, Castro avalia que é uma energia segura. “Essa política de estado já tem um histórico do passado com o submarino nuclear, acordo com a Alemanha e graças a isso o Brasil desenvolveu uma competência tecnológica, uma cadeia produtiva”, diz o acadêmico.

O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afirmou que a energia nuclear é uma das prioridades do planejamento da sua gestão, e que a fonte é estratégica para ajudar a encher os reservatórios das hidrelétricas no Brasil. O país inclusive aumentou a capacidade de enriquecimento de urânio para fortalecer a produção de energia nuclear e reduzir a dependência de hidrelétricas. A Indústrias Nucleares do Brasil (INB), órgão vinculado ao Governo Federal, inaugurou em novembro de 2021 a 9ª cascata de ultracentrífugas da Usina de Enriquecimento Isotópico de Urânio.

Múltiplas opções

O Brasil é pioneiro na tecnologia de extração de petróleo, é um dos líderes em geração hidráulica, tem a melhor tecnologia do mundo para produção de etanol e biodiesel, pode se tornar um hub de exportação de hidrogênio e é líder mundial em energias renováveis. Ou seja, há opções energéticas em abundância.

O país também tem a sexta maior reserva de urânio do planeta, é um dos poucos no mundo que dominam a tecnologia de enriquecimento para fins pacíficos, e a fusão nuclear é fundamental para outros objetivos, como radioterapia no combate ao câncer, por exemplo. Fontes ouvidas pela reportagem dizem que este tipo de energia aparece como uma alternativa capaz de produzir eletricidade em massa sem comprometer os compromissos de redução de emissões de efeito estufa e descarbonização da economia, mas destacam os altos custos aos consumidores que terão que pagar por essa energia.

Dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mostram que as duas usinas nucleares do Brasil respondem por pouco mais de 2% da matriz elétrica. Na visão do diretor técnico da consultoria PSR, Fernando Porrua, o desafio da descarbonização das economias é gigante e caiu a ficha que todas as tecnologias não emissoras serão necessárias, além de tecnologias de captura de carbono. “A nuclear é uma fonte não emissora e de muita densidade energética, ou seja, produz muitos megawatts (MW) por unidade de área utilizada. E com isso aporta escala”, diz.

Porrua lembra que na Europa a decisão de muitos países de abandonar a nuclear foi muito motivada por questões bélicas e políticas aceleradas após o acidente de Fukushima, no Japão, que provocou uma oposição pública quase generalizada à nuclear. O histórico desastre nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, também traz o medo de grandes acidentes e contaminação radioativa. No entanto, a busca por autossuficiência tem levado países, como a França, a voltar atrás e decidir reativar seus programas nucleares, enquanto outros, como o Reino Unido, a tentar aumentar a produção nacional com novas usinas.

“É um pragmatismo no sentido de que existe um compromisso com a agenda climática e que talvez não seja possível cumpri-lo somente com renováveis porque estes países têm questões muito particulares, como falta de terreno, ausência de recursos flexíveis para mitigar a intermitência das renováveis”, diz o especialista.

E em paralelo há avanços tecnológicos em pesquisa e desenvolvimento que tem dado uma luz na direção da redução de custos, que pode inclusive vir a beneficiar o Brasil com nucleares de menor porte. Nivalde de Castro, da UFRJ, considera a opção de pequenos reatores modulares como um movimento tecnológico importante que poderia ser usado para levar eletricidade a regiões isoladas.

Desafios

O Brasil é reconhecido mundialmente pela qualidade de sua indústria nuclear. No entanto, para a diretora-geral da Associação Nuclear Mundial, Sama Bilbao y Leon, o país precisa antes terminar as obras de Angra 3 o mais rápido possível sob o risco de perder sua capacidade de construir usinas nucleares.

“Essa situação pode levar a uma certa erosão das capacidades internas e do ‘know how’ que o Brasil tinha em relação à construção de usinas nucleares. (…) Concluir Angra 3 significa revisar ou rever essas capacidades e será fundamental para pensar na construção da quarta usina nuclear”, afirmou.

O presidente da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), Paulo Pedrosa, questiona o custo de uma nova usina nuclear no Brasil em um contexto em que os preços para os consumidores já estão altos.

“A energia no Brasil é cara e há perspectivas de aumento de custos com a contratação de reserva de capacidade. Os estudos do BNDES estão apontando para uma tarifa de Angra 3 que pode chegar a R$ 800 por MWh, isso significa um custo adicional à expansão competitiva da ordem de R$ 4 bilhões por ano que será pago pelo conjunto de consumidores, inclusive os industriais”.

Em paz com o clima

Fontes ouvidas pela reportagem apontam que o conflito da Rússia com a Ucrânia deve acelerar a revisão das matrizes energéticas, sobretudo na Europa. Entre as medidas que deverão ser adotadas, estão a diversificação dos fornecedores, o aumento da eficiência energética e a redução da dependência de combustíveis fósseis.

Neste contexto, o Brasil poderia se beneficiar. De acordo com a World Nuclear Association, apenas 13 países detém a tecnologia de enriquecimento de urânio para fins pacíficos. O Brasil é um deles. Sobre uma possível fabricação de uma bomba atômica ou armas nucleares, a Constituição Brasileira determina que o urânio só pode ser beneficiado para fins pacíficos. Além disso, o Brasil é signatário de acordos internacionais que selam o compromisso e garantem o cumprimento de uso pacífico da energia nuclear.

Tratados globais à parte, há a necessidade da tecnologia “fazer as pazes” com o clima e de uma infraestutura urbana adequada e robusta para lidar com eventos extremos, que estão cada vez mais intensos e frequentes. Na esteira das fortes chuvas que castigaram Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, na última semana, o prefeito da cidade pediu o desligamento das usinas nucleares após as chuvas que interditaram os principais acessos à cidade e destruíram casas.

O temor era de que com a cidade ilhada, não seria possível acionar um plano de emergência e evacuação, se necessário fosse. A Eletronuclear replicou que não existiam razões técnicas para que as usinas de Angra 1 e Angra 2 fossem desligados. “Defendo as usinas nucleares, mas o plano de emergência se faz também com as estradas. Imagine se houver um problema técnico nas usinas? Precisamos das estradas para evacuar a população”, defendeu o prefeito Fernando Jordão.

Fonte: Um Só Planeta