O hidrogênio verde entrou de vez no radar do setor energético brasileiro com o recente anúncio do governo federal da elaboração de um programa nacional voltado a essa fonte. Aqui no Brasil, algumas iniciativas pioneiras despontam como as tentativas iniciais de viabilizar o hidrogênio verde como alternativa energética. Um dos projetos de maior destaque neste sentido está em Angra dos Reis (RJ), liderado pela Eletronuclear. A empresa dispõe, desde 1997, de um sistema totalmente brasileiro que produz hipoclorito de sódio e hidrogênio. Ao todo, a companhia é atualmente capaz de gerar 150 kg do gás por dia, mas tem potencial de aumentar esse volume para 300 kg por dia. Com a entrada de Angra 3, o salto será ainda maior, batendo os 500 kg por dia. Para conhecer mais sobre essa tecnologia, conversaremos hoje (27) com Karla Lepetitgaland, coordenadora da área de inovação na Eletronuclear; e Nelri Ferreira Leite, autor do projeto intitulado “Geração de hidrogênio verde em Angra dos Reis”.
Nesse momento, a Eletronuclear está estudando internamente a possibilidade de implantar uma planta de beneficiamento de hidrogênio em Angra dos Reis, o que tornaria possível o aproveitamento do gás. Caso decida investir de fato nesse projeto, a companhia ainda tem algumas etapas pela frente, como os estudos de viabilidade e aquisição de equipamentos para a planta de beneficiamento. “Temos um investimento ainda a fazer e gostaríamos muito de fazer isso em parceria com uma instituição que detivesse o conhecimento e experiência no uso dessa tecnologia”, explicou Karla. Para lembrar, o projeto de geração de hidrogênio em Angra foi o vencedor da I Olimpíada Nacional de Inovação Eletrobras, no ano passado. Depois do prêmio, os profissionais envolvidos na iniciativa já fizeram uma maquete digital do que seria a planta de beneficiamento de H2. “Hoje, temos um esboço do projeto básico do beneficiamento”, detalhou Nelri. “ A Eletronuclear tem a condição de sair na vanguarda do setor elétrico do Brasil e produzir uma planta [de beneficiamento]”, acrescentou.
Poderia contar aos nossos leitores sobre a origem do projeto de produção de hidrogênio verde na central de Angra?
Nelri Ferreira Leite, autor do projeto
Nelri – Para entender esse projeto, é preciso voltar um pouco no tempo. Em 1997, nós implementamos um novo sistema de produção de hipoclorito de sódio na usina de Angra 1. Até então, usávamos cloro gasoso no sistema de refrigeração para controlar o crescimento de organismos nos nossos componentes. Entretanto, o cloro gasoso era muito ineficiente e tinha um risco associado muito grande. Um eventual vazamento do cloro comprometeria a operação e a performance do sistema. Por isso, naquela época, tomamos a decisão de substituir o sistema de cloro gasoso.
A geração de hipoclorito de sódio é uma solução racional que vem sendo largamente usada em usinas próximas ao mar, sendo os insumos necessários a água do mar e a eletricidade. Então, começamos a estudar e trabalhar nesse sistema. O corpo técnico de FURNAS na época nos ajudou muito. Dimensionamos um sistema de eletrólise compatível para substituir as 40 toneladas de cloro que nós usávamos por mês em Angra 1.
Qual tem sido a destinação do hidrogênio que é produzido juntamente com o hipoclorito de sódio?
Nelri – Esse hidrogênio é muito cobiçado e valioso para algumas indústrias. Mas na época [em que o sistema foi desenvolvido], nós não tínhamos para onde destinar o gás. O sistema de cloração da usina de Angra 1 funciona muito bem até hoje. Entretanto, quanto ao hidrogênio, a única alternativa que nos foi propiciada foi diluí-lo e jogá-lo para a atmosfera. Nesse ínterim, passaram-se 20 anos.
Quando Angra 2 entrou em operação já contava com um sistema próprio de eletrólise. Hoje, temos duas plantas de produção de hipoclorito, uma em cada usina. Ao todo, temos uma produção de hidrogênio em torno de 70 Normal Metro Cúbico por hora (Nm³/h), que são jogados para a atmosfera.
A partir de que momento vocês chegaram à ideia de aproveitar o hidrogênio?
Nelri – Com a modernização dos tempos, o hidrogênio passou ficar em voga no mundo inteiro. Nossa produção de hidrogênio, só para ter noção, é a maior do Brasil. A mais recente planta implementada em FURNAS Itumbiara (GO) tem uma produção de pico de 50 Nm³/h.
O mundo está caminhando para a economia do hidrogênio verde. A Europa inteira está se voltando para isso, em função do Acordo de Paris. Enquanto isso, a indústria automobilística já está lançando seus carros movidos a hidrogênio na Coreia do Sul, na Alemanha e nos Estados Unidos. A Europa já está praticamente validando essa tecnologia. Porém, aqui embaixo da linha do Equador, temos poucos experimentos.
Com essa produção de hidrogênio em Angra e esse contexto mundial de transição energética, surgiu então o interesse de apresentar o projeto de beneficiamento de hidrogênio na Olimpíada de Inovação?
Nelri – Para aproveitar o hidrogênio, precisaríamos montar uma planta de beneficiamento. Apesar de produzirmos um hidrogênio eletrolítico com muita qualidade, a concentração do gás está em torno de 96%. Para utilização em carros, em células combustíveis e outras finalidades, precisaríamos elevar a concentração para 99,99%.
Apresentamos esse projeto na Olimpíada de Inovação da Eletrobras. Temos uma produção de hidrogênio há 20 anos e estamos jogando essa quantidade enorme de hidrogênio para a atmosfera. Mas temos a possibilidade de validar toda a tecnologia do hidrogênio no site de Angra. A Eletronuclear tem a condição de sair na vanguarda do setor elétrico do Brasil para produzir uma planta [de beneficiamento]. Mas isso é coisa de futuro e depende muito do direcionamento da empresa.
Eu tenho orgulho de dizer que foi a engenharia da Eletronuclear que nos permitiu desenvolver essa tecnologia. Foi uma coisa inovadora há 22 anos atrás e que continua sendo inovadora hoje. Todo o projeto da eletrólise não tem nada importado. É tudo nacional. Isso é um orgulho para nós da área da engenharia. É um projeto genuinamente nacional.
A vitrine dada ao projeto pela Olimpíada foi importante nesse momento, justamente quando o país começa a discutir a produção e uso de hidrogênio como fonte energética…
Karla – O projeto ganhou destaque agora porque o momento é muito oportuno. Nos dois últimos anos, o hidrogênio verde virou o símbolo da transição energética mundial, assumindo o papel de uma tecnologia disruptiva para descarbonização do setor energético. No começo desse ano, mais de 30 países já haviam lançado roadmaps de hidrogênio como fonte de energia. Desses, foram 10 somente em 2020. Existem mais de US$ 70 bilhões de investimentos em projetos de hidrogênio. Mais da metade desses empreendimentos estão na Europa. Enquanto isso, só cinco estão na América Latina. Só por esses números dá para ver a importância do nosso projeto.
Todos os projetos envolvendo hidrogênio são de pesquisa e desenvolvimento ainda. Não podemos falar que temos um projeto de escala industrial. Mas nós da Eletronuclear estamos na frente em termos de domínio da geração do gás. Ainda não temos uma planta de aproveitamento, mas possuímos um domínio há 20 anos da produção de hidrogênio.
Quais seriam os próximos passos da Eletronuclear no sentido de começar a beneficiar o hidrogênio na Central Nuclear de Angra dos Reis?
Karla – Estamos estudando internamente a possibilidade de uma planta de captura e aproveitamento do hidrogênio. Esse projeto tem um grande apelo socioambiental. Isso é uma característica do setor nuclear, embora muitas pessoas não vejam isso. Damos prioridade à segurança da sociedade e à preservação do meio ambiente. Esse é um aspecto que se reflete em todos os nossos projetos.
Para fazer a planta de aproveitamento, precisamos fazer estudos de viabilidade e de desenvolvimento do projeto de engenharia. Também são necessários o desenvolvimento da definição dessas aplicações, o estudo do modelo de negócios, o estudo técnico-econômico e a aquisição de equipamentos para a planta de beneficiamento. Temos um investimento ainda a fazer e gostaríamos muito de realizar isso em parceria com uma instituição que detivesse o conhecimento e a experiência no uso dessa tecnologia.
Quais são os grandes diferenciais do projeto de produção de hidrogênio e de um futuro beneficiamento do gás em Angra dos Reis?
Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque: pasta anunciou planos para estabelecer diretrizes para o Programa Nacional de Hidrogênio
Karla – O governo brasileiro está desenvolvendo a estratégia para progredir com o hidrogênio no Brasil. O Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, anunciou isso durante um evento promovido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. O grande interesse hoje está na geração de hidrogênio por fontes com baixa emissão de carbono. A fonte nuclear, por ser limpa e confiável, tem grande vantagem nesse mercado. Além disso, a Eletrobrás está interessada em explorar o hidrogênio limpo e por isso está negociando um projeto de P&D com a participação da Siemens.
Existem cerca de 440 reatores em operação no mundo, mas podemos contar nos dedos aqueles que estão com projetos de pesquisa para produção de hidrogênio. Nos Estados Unidos, com seus mais de 90 reatores, existem apenas quatro desses projetos.
No caso da Central Nuclear de Angra dos Reis, o maior risco e o maior investimento em um projeto desses já foi mitigado, porque já temos a geração de hidrogênio por meio da eletrólise. O que nos falta é realmente a planta de beneficiamento, que é a parte menos cara e que tem menos risco. Precisamos também definir a aplicação do hidrogênio.
Atualmente, nosso sistema é capaz de produzir cerca de 150 kg de hidrogênio por dia, sendo que ele é dimensionado para gerar muito mais. A produção atual pode passar de imediato para 300 kg a partir de pequenos ajustes no processo. Adicionalmente, está prevista em Angra 3 a aquisição de novos eletrolisadores, semelhantes aos de Angra 2. Quando Angra 3 entrar em operação e tivermos a planta de beneficiamento, o sistema poderá gerar cerca de 500 kg por dia.
Que tipos de aplicação desse hidrogênio verde estão no radar de oportunidades?
Karla – Vemos vários horizontes. As aplicações mais competitivas são de curto de prazo: abastecimento de meios de transporte urbanos e armazenamento de energia. As aplicações de médio prazo são aquelas de transporte de longa distância, pensando em combustível sintético para aviação, marítimo e trens.
Nelri – O que nós vislumbramos é validar a tecnologia no país. A Eletronuclear realmente teria condição de fazer a validação dessa tecnologia. Não só no uso da célula combustível, mas também fazer aplicação no transporte. Isso tudo aparentemente é futurístico no Brasil. Mas na Europa e nos Estados Unidos já existem estações de abastecimento de carros movidos a hidrogênio. Seria preciso fazer uma junção de players para trazer essa tecnologia para nosso país.
Enquanto a Eletronuclear estuda a viabilidade de uma planta de beneficiamento, poderiam nos contar também sobre as próximas etapas dentro da I Olimpíada Nacional de Inovação Eletrobras?
Nelri – O segundo passo depois da Olimpíada foi uma fase de prototipação, onde nós simulamos o que seria esse beneficiamento do hidrogênio. Fizemos um modelo reduzido, uma maquete digital, onde estipulamos o que seria necessário para fazer o beneficiamento. Validando isso, necessariamente precisaremos do estudo mais detalhado de engenharia. Hoje, temos um esboço do projeto básico do beneficiamento.
Depois dessa parte de prototipação, a partir de janeiro começou a jornada de empreendedores, que também é objeto da Olimpíada. Nós estamos finalizando agora o que seria a montagem de um negócio em função do que estamos produzindo. Já temos algumas aplicações diretas que podemos ter nas usinas nucleares, que usam hidrogênio nos geradores elétricos. Outra aplicação seria uso na geração de energia para iluminar os prédios da central nuclear, abatendo a conta de luz do site de Angra.
Fonte: Petronotícias