Baiana, preta e cientista: ela conquistou bolsa de agência nuclear mundial

A baiana Gabryele Moreira, 29, não imaginou que chegaria tão longe na carreira como física. A estudante de mestrado em tecnologia nuclear da USP (Universidade de São Paulo) será a primeira brasileira preta a participar do Programa de Bolsas Marie Sklodowska-Curie (MSCFP), oferecido pela Agência Internacional de Energia Atômica, ligada à ONU (Organização das Nações Unidas).

Gabryele Moreira, 29, ganhou bolsa de estudos da Agência Internacional de Energia Atômica (Arquivo Pessoal)

Graças a ele, a jovem, graduada em física médica pela UFS (Universidade Federal do Sergipe), receberá uma bolsa de estudos no próximo ano para fazer o mestrado fora do Brasil. “Eu não acreditei. Gritava muito que achavam que tinha acontecido algo com a minha família. A gente enfrenta tantas barreiras”, contou Gabryele, que foi a primeira a cursar o ensino superior na sua família, a Tilt.

Criado em 2020, o programa Marie Sklodowska-Curie tem como objetivo aumentar o número de mulheres na área da ciência nuclear, tornando o ambiente mais diverso. Através dele são oferecidos as vencedoras entre 20 e 40 mil euros, com possibilidade de estágio e uma remuneração mensal de mil euros.

O destino de seu mestrado fora do Brasil ainda não foi divulgado, segundo Gabryele. “Eles vão decidir. Por enquanto só assinei o contrato e eu esperando. Mas a princípio pode ser em Viena, na Áustria.”

As bolsas de mestrado são concedidas anualmente, de acordo com a Agência Internacional, com até 100 alunas selecionadas por ano, dependendo da disponibilidade dos recursos. O nome do programa é uma homenagem à física Marie Sklodowska-Curie, duas vezes vencedora do Prêmio Nobel. No ano passado, mais de 550 candidatos de mais de 90 países participaram da seleção.

Mulheres na ciência nuclear

Para concorrer no programa internacional de bolsas, foi necessário responder perguntas mostrando toda a sua trajetória acadêmica e detalhar os projetos que já havia realizado. Além disso, também foi questionado o impacto desses trabalhos científicos na vida das mulheres.

Aliado a isso, Gabryele acredita que um estudo que ela realizou com outras pesquisadoras sobre o perfil sociocultural de mulheres que trabalham em uma instituição nuclear brasileira também contribuiu para o resultado. A pesquisa foi feita por ela, Priscila Rodrigues, Karoline Suzart e Nélida Mastro.

O fato de a área nuclear ser predominantemente masculina, principalmente formada por homens brancos, começou a chamar a atenção da mestranda durante as aulas na USP. Gabryele começou então a frequentar debates acadêmicos voltados para ciência e que traziam questões de gênero e raciais.

A constatação de que o público feminino se desenvolvia pouco na área despertou ainda mais seu incomodo, que serviu de motivação para que elas e suas colegas investissem no trabalho de compreender melhor esse cenário.

“[O estudo] Foi elaborado com um questionário respondido de forma voluntária pelas mulheres que atuam no IPEN [Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares] e tinha questões de cor, naturalidade e outros”, diz a mestranda.

A pesquisa foi desenvolvida em parceria com Win Brasil (Women in Nuclear Brasil), atualmente presidido por Danila Dias, que está ligada à agência internacional de energia anatômica.

Para se ter uma ideia, o IPEN, que fica dentro da Universidade de São Paulo, é um dos poucos reatores nucleares do Brasil. Por aqui, tem ainda os reatores de pesquisa Argonautas, do IEN (Instituto de Energia Nuclear), da UFRJ, e o CDTN (Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear), da UFMG.

A descoberta da ciência

A baiana lembra que sempre foi mais adepta das matérias de humanas na escola, mas foi no ensino superior que sua paixão pela física surgiu, principalmente pela área nuclear.

“Minhas professoras me falaram das cotas e comecei a fazer cursinho pré-vestibular. Iniciei o tecnólogo em radiologia e um médico me disse para fazer física médica”, afirma a jovem, filha de mãe dona de casa e pai rodoviário.

Esse curso ainda é relativamente novo no Brasil e poucas universidades oferecem a graduação. Foi então que ela foi aprovada no vestibular da UFS e precisou se mudar em 2013. Até então, ela morava no bairro baiano Cajazeiras, na periferia de Salvador.

Como não tinha muitos recursos financeiros, recorreu a políticas públicas como auxílio pedagógico (para os custos com materiais de estudo), auxílio moradia e bolsa xerox. “Eu recebia R$ 650 para me manter. Consegui seguir até 2018 por meio de políticas públicas”, relembra.

Trajetória inspirada por professoras

Até chegar na pós-graduação na USP, a estudante teve um caminho de grana curta, mas de muito incentivo, destaca. Durante a graduação, a jovem se aproximou de cinco professoras que a incentivaram a buscar novos horizontes e ir além da faculdade.

Segundo a mestranda, elas “sustentam” o curso de uma maneira fora do comum e ainda têm um trajetória de força no CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Na época da faculdade em Sergipe, as professoras incentivaram Gabryele a cursar um mestrado na USP (Universidade de São Paulo) e seguir com novas pesquisas. Foi então que ela se mudou para a capital paulista e foi aceita no mestrado de tecnologia nuclear do IPEN.

A estudante ressalta a importância dessa rede de apoio e incentivo para fortalecer um ambiente em que mais mulheres permaneçam na ciência. São muitas situações de machismo e racismo vividas diariamente, destaca. “No trabalho que eu fiz, a gente conseguiu perceber a maioria que respondeu foi orientada por homens.”

Para ela, o papel da mulher dentro na academia vai além de desenvolver pesquisa. É preciso também incentivá-las. “Essas mulheres são pouco reconhecidas no ambiente acadêmico e em congressos, na liderança de chefias e departamentos. Às vezes não tem espaço para visibilidade”, acrescenta.

Assim como em sua trajetória, Gabryele torce e deseja que outras estudantes se desenvolvam na área nuclear e que esta deixe de ser ocupada majoritariamente por homens. “As pessoas acham que para ser machismo e racismo está atrelado em ações. Mas somos testadas todos os dias e não só em ações diretas. Somos testadas por sermos mulher e mulher preta”, conclui.

Fonte: UOL