Construção de submarino nuclear da Marinha brasileira corre risco de naufragar

Há pouco mais de duas semanas, o poder bélico das nações era assunto restrito aos círculos militares, à indústria de defesa e aos especialistas do setor. Após o dia 24 de fevereiro, isso mudou. Vladimir Putin invadiu a Ucrânia, deu início à mais grave e perigosa guerra na Europa desde a derrota de Hitler e jogou luz sobre a capacidade de cada país se defender de ameaças externas. No caso do Brasil, o instrumento de dissuasão mais almejado é o submarino com propulsão nuclear. O problema é que esse projeto enfrenta riscos e pode naufragar. Os obstáculos já existiam antes. Com guerra, ficaram maiores.

O Submarino Convencional de Propulsão Nuclear (SCPN) Álvaro Alberto é a joia da coroa do Prosub, um programa de grande impacto e orçamento multibilionário lançado em 2008. Ele também prevê a construção de quatro submarinos convencionais. Todos são fruto de uma parceria estratégica entre Brasil e França.

Para a Marinha, o SCPN é o mais importante projeto tecnológico do Brasil na atualidade e, quando pronto, significará um formidável ganho operacional no Oceano Atlântico. Na comparação com um convencional, será mais rápido, terá mais autonomia e capacidade de manter-se oculto por longos períodos em águas profundas.

O SCPN também é sinônimo de prestígio internacional. Submarino nuclear é coisa para poucos. Hoje, apenas os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido), além da Índia, detêm essa tecnologia. Essas seis nações também já fizeram suas bombas atômicas.

O Brasil pode ser o primeiro país a submeter à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) um modelo de salvaguardas tecnológicas (o mecanismo de proteção e de vistoria componentes sensíveis) voltado a um submarino movido com combustível nuclear e armas convencionais, como torpedos de alta precisão, minas e mísseis SM 39 Exocet. Se demorar demais, no entanto, será superado pela Austrália, que recentemente fechou uma parceria com os Estados Unidos e o Reino Unido para ter o seu próprio submarino de propulsão nuclear.

Questões no caminho

Para entender a raiz dos problemas do SCPN, antes é preciso compreender como esses seis países veem os planos da Marinha brasileira. Na avaliação de almirantes da ativa, oficiais da reserva que participaram do programa e especialistas do setor, o Brasil terá enormes dificuldades para seguir em frente no que depender dos interesses estratégicos dessas nações. E o SCPN depende dessa cooperação, em especial com os Estados Unidos e seus aliados militares.

Em 24 de maio de 2021, quase um ano antes da primeira bomba explodir na Ucrânia, a Marinha promoveu um evento no Complexo Naval de Itaguaí (RJ), onde são construídos os quatro submarinos de propulsão convencional. O lugar também foi projetado para receber o submarino de propulsão nuclear. No evento, o então diretor-geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico, o almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen, fez um balanço detalhado das atividades. Ali já se tornariam evidentes os nós enfrentados pelo programa.

O financiamento de todo o Prosub, embora volumoso (já recebeu mais de R$ 27 bilhões), sofre com a imprevisibilidade. Entre 2015 e 2021, os recursos para o programa ficaram aquém do planejado. Até meados do ano passado, o submarino nuclear havia recebido investimentos da ordem de R$ 810 milhões. Neste ano, as chapas de aço prensado do casco foram contratadas e devem ser entregues até dezembro.

Esse fluxo financeiro não compromete o sucesso dos submarinos convencionais. Há atrasos, especialmente por adaptações para o alongamento do casco original, que foram executadas a pedido da Marinha. Mas a meta da Força é entregar a quarta e última unidade, o submarino Angostura, em fevereiro de 2025.

Porém no caso do submarino nuclear, a instabilidade de recursos se alia ao desafio tecnológico de desenvolver um reator que se encaixe perfeitamente — e com segurança — dentro da embarcação, submetida à alta pressão e a turbulências de toda ordem. E a indústria brasileira, como revelou na ocasião o almirante Olsen, não dá conta de fornecer essas tecnologias críticas.

— O acesso às tecnologias sensíveis é determinante, à medida que a nossa base industrial de defesa se mostra ainda incipiente. Acaba que não tenho fornecedores no Brasil que atendam aos requisitos nucleares — explicou o almirante durante sua apresentação no Complexo de Itaguaí, na qual lamentou a falta de empenho da academia em pesquisa aplicada no setor.

A Marinha já desenvolveu o ciclo de produção de energia nuclear que, desde 1985, permite o funcionamento da Usina de Angra 1. Falta, porém, a capacidade de desenvolver componentes que permitam a esse mesmo reator (chamado de PWR) operar com total segurança nas dimensões e características necessárias e, depois, integrá-lo às outras estruturas do submarino.

Essas lacunas ameaçam todo o projeto, inclusive a etapa imprescindível de reprodução em terra das condições que serão encontradas no mar pelo reator atômico e por seus componentes. Essa reprodução ocorrerá no Laboratório de Geração Nucleoelétrica (Labgene), em Iperó (SP), que é uma maquete de tamanho real do SCPN.

O laboratório avança, porém em ritmo aquém do desejado. Sua preparação, de alta complexidade, estaria cerca de sete anos atrasada em relação ao cronograma inicial, segundo um oficial ligado ao programa. Espera-se que Labgene trabalhe tal como um reator que opera dentro do submarino no final de 2024 — o SCPN está previsto para 2034. Para que isso aconteça, é preciso ir ao mercado, que já estava de portas fechadas.

— A minha maior preocupação diz respeito ao acesso a tecnologias sensíveis. E os Estados Unidos interferem não só com relação àquelas encomendas a empresas americanas, mas a de outros países — afirmou Olsen, em maio do ano passado.

Fonte: O Globo