Por Philip Ball, comunicador científico e ex-editor da revista Nature.
Fusão nuclear poderia potencialmente produzir energia abundante e segura, sem a produção significativa de emissões de gases do efeito estufa ou de lixo nuclear. Mas ela permanece há décadas frustrantemente esquiva como uma tecnologia praticável. Mas, agora, um marco importante em direção a este objetivo foi ultrapassado: uma reação de fusão que retira a maioria de seu calor de suas próprias reações nucleares, ao invés da energia injetada no combustível vinda de fora.
Uma equipe da Instalação Nacional de Ignição (NIF, na sigla em inglês) no Laboratório Nacional Lawrence em Livermore (LLNL) na Califórnia (EUA), relatou que obteve a condição chamada “plasma em combustão” usando uma abordagem conhecida como fusão de confinamento inercial, na qual as temperaturas e pressões ferozmente altas necessárias para iniciar fusão em um combustível de isótopos de hidrogênio são produzidas por pulsos intensos de luzes de laser. As descobertas dos pesquisadores foram publicadas na revista Nature, com estudos complementares publicados em Nature Physics e no repositório de preprints arXiv.org. “Os dados mostram claramente que eles atingiram essa condição”, afirma George Tynan, físico de fusão da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA), que não está envolvido com o trabalho.
“Os resultados do NIF são muito importantes”, afirma Peter Norreys, físico de fusão da Universidade de Oxford, que não é parte do estudo. “Eles mostram que a busca por um reator de fusão inercial é uma possibilidade realista para o futuro e não requer teorias da física difíceis ou intransponíveis”. Kate Lancaster, física de plasma da Universidade de York, na Inglaterra, que também não estava envolvida com o trabalho, concorda. “Essa é uma conquista incrível, uma culminação de uma década de pesquisa cuidadosa e incremental”, afirma ela.
Fusão nuclear — o processo que alimenta estrelas e que é acionado de forma explosiva em bombas de hidrogênio — requer calor e pressão extremos para fornecer energia suficiente aos átomos para que eles possam superar a repulsão eletrostática entre seus núcleos carregados positivamente, para que possam fundir-se e liberar energia. O combustível mais comum para produzir uma fusão controlada nos reatores consiste de uma mistura de deutério e trítio, isótopos pesados de hidrogênio, que podem unir-se para produzir hélio. A energia liberada pode ser coletada para geração de eletricidade — por exemplo, ao usar o calor para mover turbinas elétricas convencionais. Ao contrário da fissão nuclear — o processo utilizado em todas as usinas nucleares de hoje — a fusão não usa ou gera grandes quantidades de materiais radioativos com longas meias-vidas. E, em contraste com a fissão, a fusão não envolve uma reação em cadeia, o que a faz inerentemente mais segura: qualquer mudança nas condições de funcionamento de um reator de fusão faria com que ele se desligasse automaticamente em um instante.
A vantagem da fissão é que ela tipicamente ocorre em reatores em temperairas de um pouco mais de 1.000 kelvins, enquanto a fusão deutério-trítio (D-T) começa em temperaturas de 100 milhões kelvins — mais quente do que o coração do Sol. Lidar com um plasma fervendo dessa forma é, ao menos, desafiador. Uma abordagem é confiná-lo em campos magnéticos no formato de uma rosquinha, dentro de uma câmara chamada de “tokamak”. Esse foi o método escolhido por muitos projetos de fusão, incluindo o Reator Termonuclear Experimental Internacional (ITER, na sigla em inglês), para o qual uma colaboração global está construindo um enorme reator experimental na França, que está planejado para atingir fusão auto-sustentável não antes de 2035.
A fusão inercial não busca conter o plasma, mas, ao invés disso, depende apenas da inércia para mantê-lo unido por um breve instante após a fusão ser acionada por uma compressão ultra rápida do combustível. Isso cria uma liberação de energia muito breve — uma pequena explosão termonuclear — antes que o combustível em combustão se expanda e dissipe seu calor. “Projetos de energia de fusão baseados em confinamento inercial envolvem repetir o processo de pulso várias vezes, de forma semelhante aos pistões em um motor de combustão interna, que são acionados diversas vezes por segundo para gerar energia quase continuamente”, explica Omar Hurricane, do LLNL, cientista chefe para o programa de Fusão de Confinamento Inercial da NIF e líder de equipe dos experimentos mais recentes.
Mesmo que a fusão de confinamento inercial não tenha que resolver o problema de manter o plasma quente e instável dentro de um tokamak, ela ainda requer injeções enormes de energia para iniciar o processo de fusão. A equipe da NIF usou 192 lasers de alta potência, todos focados em uma câmara chamada “hohlraum”, que possui o tamanho e formato de uma borracha de lápis, e contém a cápsula de combustível de deutério e trítio. A energia dos lasers aquece e vaporiza a camada externa da cápsula, empurrando-a e criando um impulso que comprime e aquece o combustível no centro. No método da NIF, os feixes de laser não acionam a detonação diretamente, ao invés disso, eles atingem a superfície interna do hohlraum, liberando dentro da pequena câmara um banho furioso de raios-x que comprimem a cápsula.
Pesquisadores demonstraram a viabilidade de começar a fusão desta forma nos anos 1970. Mas chegar até o estágio do plasma em combustão foi um processo lento, cheio de problemas técnicos e retrocessos. “Durante muitas décadas, pesquisadores foram capazes de fazer reações ocorrerem usando muito calor externo para aquecer o plasma”, afirma Alex Zylstra, do LLNL, membro da equipe da NIF. “Em um plasma em combustão, que agora criamos pela primeira vez, as próprias reações de fusão ocorrem fornecem a maior parte do aquecimento”. Essas condições duram por apenas 100 trilionésimos de segundo antes que a energia do plasma se dissipe.
“Não há nenhum segredo em particular que permitiu com que eles realizassem essa conquista, mas sim uma gama de avanços menores”, afirma Tynan. Para ter qualquer esperança de fazer o processo de fusão se auto-sustentar, a energia que produz deve ser depositada em sua maioria em camadas de combustíveis adjacentes, ao invés de vazar da cápsula para aquecer os seus entornos. Isso significa que a cápsula tem de ser grande e densa o suficiente para manter a energia em seu interior e ao mesmo tempo ser capaz de colapsar simetricamente — esse é um dos problemas resolvidos pela equipe da NIF. Os pesquisadores também alteraram o design do hohlraum para garantir que seu interior se encha de raios-x de forma uniforme, criando, em última instância, uma implosão da cápsula de combustível mais suave, mais forte e mais eficiente. “Nós tivemos que aprender como controlar melhor a simetria ao mesmo tempo que fazíamos a explosão ficar maior”, explica Hurricane. Essas melhorias necessitam de décadas de trabalho. “Foi um longo processo de tentativa e erro, guiado por computações”, aponta Tynan.
Dentre as operações experimentais reportadas pelos pesquisadores da NIF, quatro delas, conduzidas em 2020 e no começo de 2021 excederam o limiar de energia de fusão para o plasma em combustão. O mais recente destes foi em fevereiro de 2021, portanto “claramente levou algum tempo para que eles convençam seus colegas da validade de seus resultados”, afirma Vladimir Tikhonchuk, um físico de plasma na Universidade de Bordeaux, na França. não envolvido com o trabalho. Mas eles claramente conseguiram fazê-lo. “Eu realmente acredito que a publicação desses estudos é um evento científico importante”, adiciona Tikhonchuk.
No entanto, tornar a fusão nuclear viável requer mais do que apenas plasma em combustão. Primeiramente, mesmo que o plasma esteja se auto-aquecendo, ele pode irradiar mais calor do que gera, incluindo a energia perdida quando a implosão espalha os materiais após atingir a compressão máxima. “Mesmo que tenha plasma em combustão, a reação se extingue se as perdas de irradiação são muito grandes”, explica Tynan. Mas a equipe da NIF observa que, em uma de suas operações, o aquecimento superou essas perdas.
Isso traz os cientistas mais próximos de seu próximo grande objetivo: ignição, no qual a resultante da liberação de energia da reação de fusão nuclear excede a energia injetada para produzi-la. Na média, eles podem produzir 0,17 megajoules de energia de fusão para uma injeção de 1,9 megajoules de energia dos lasers. Em outras palavras, as tentativas da NIF injetam a energia equivalente a meio quilograma de TNT em um pequeno hohlraum para conseguir apenas 10 vezes menos energia. Mas isso ainda está perto o suficiente do ponto de igualar os números para que os pesquisadores fiquem animados. “Eles estão bem no limiar de atingir uma queima de ignição capaz de se propagar”, diz Tynan.
Lancaster é otimista com relação a isso. “Estamos agora em um regime em que melhorias modestas podem criar grandes ganhos na energia gerada”, afirma ela. “Nós definitivamente passamos de um ‘se’ para um ‘quando’ para ignição”.
Até mesmo atingir ignição seria apenas o fim do começo para fusão nuclear. Primeiramente, a resultante do ganho de energia não deve ser apenas demonstrada, mas também melhorada para compensar as ineficiências de converter calor em eletricidade. Métodos melhores também devem ser desenvolvidos para produção e manejo in loco de trítio para uso como combustível. E, no caso específico de fusão de confinamento inercial, as cápsulas de combustível delicadamente desenvolvidas devem ser fabricadas em abundância — e por preços menores. “Neste momento, elas custam $1 milhão e são peças customizadas, feitas no laboratório”, afirma Tynan. Mas para que uma usina de energia nuclear de fusão inercial gere lucro, “você precisa produzir centenas de milhares delas por dia por um custo de 10 centavos a unidade”. E esses resultados espetaculares para plasma em combustão em confinamento inercial “não traduzem para os tokamaks” de nenhuma forma, adverte Hurricane.
“As pessoas trabalhando neste domínio entendem muito bem que existe uma grande diferença entre uma [eventual] demonstração de ignição e um reator de fusão nuclear comercial”, afirma Tikhonchuk. A diferença certamente não será igualada na NIF, que está equipado para explorar a física básica da fusão, especialmente no contexto do manejo das reservas nucleares e segurança nacional. “Nós ainda não temos lasers com a energia e potência necessárias para operar no ritmo de repetição de alguns acionamentos por segundo”, adiciona Tikhonchuk — ainda assim, Lancaster afirma que esses lasers estão “a caminho, com grandes programas no Reino Unido, EUA, França e Alemanha, por exemplo”.
“Agora que a NIF demonstrou que [as condições de plasma em combustão] podem ser feitas em instalações controladas de laboratório”, afirma Norreys, soluções para os desafios remanescentes “precisam ser estudadas nos próximos anos com um vigor renovado”.
“O desafio [parte de] ‘as teorias da física permitem isso?’ para ‘podemos desenvolver um sistema viável que tenha tempo de vida suficiente e seja seguro o suficiente e possa fazer todas essas coisas a um preço acessível?’” afirma Tynan. “Essa ainda é a grande dúvida diante da comunidade de pesquisa”.