Por Davi de Souza (davi@petronoticias.com.br) –
O Ministério de Minas e Energia apresentou recentemente as diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2), cujo objetivo é definir políticas públicas e tecnologias desse setor no país. Para conhecer mais sobre a elaboração desse programa e as discussões em curso sobre o hidrogênio no Brasil, nossa entrevista de hoje (10) será com o Diretor de Estudos Econômico-Energéticos e Ambientais da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Giovani Machado. A EPE, como se sabe, é um dos agentes centrais do governo no desenvolvimento do PNH2. Ao Petronotícias, o diretor da empresa ressalta que o Brasil não está apenas interessado no hidrogênio verde (produzido a partir de fontes renováveis), mas também em outras potenciais rotas tecnológicas, como o gás natural, o etanol e a nuclear. “Não queremos abrir mão das oportunidades de investimentos nas outras rotas, desde que foquem na descarbonização – que é uma necessidade para o êxito competitivo no futuro”, afirmou. Machado também cita alguns dos desafios do país relacionados ao desenvolvimento da economia de hidrogênio, como formação de recursos humanos, desenvolvimento de tecnologias, planejamento energético e o aperfeiçoamento do desenho institucional e legal. “O que estamos preparando é como estruturar uma economia pujante de baixo carbono, na qual o Brasil será um player global, com diferentes inserções e nichos de mercado. Esse é o esforço do governo brasileiro no qual a EPE está inserida. Estamos estruturando as ações do governo brasileiro para que esse cenário vire realidade, atraindo investimentos do setor privado”, concluiu.
O Plano Nacional de Energia 2050 e o Programa Nacional do Hidrogênio são duas iniciativas importantes que trouxeram novas perspectivas para o desenvolvimento do mercado de hidrogênio no Brasil. Poderia contextualizar o cenário que levou o governo brasileiro a ter um maior interesse nessa fonte?
O hidrogênio em si não é uma novidade. O que é uma novidade é o uso energético dessa fonte. A EPE acompanha o mercado de hidrogênio desde 2006. Em 2007, publicamos o Plano Nacional de Energia 2030, que já trazia uma discussão sobre o hidrogênio como fonte energética e tecnologia disruptiva que poderia ter impacto no futuro. A fonte não se viabilizou nesse horizonte, apenas manteve sua inserção como matéria-prima nos mercados de fertilizantes, refino, químico, metalurgia e alimentos.
Existe o uso energético do hidrogênio, via célula combustível e, por outro lado, há ainda o fato de a fonte ser um vetor energético para armazenamento de energia. Isso pode ser casado com todo o processo de transição energética e o aumento da participação de renováveis variáveis, como eólica e solar. Em alguns países, essas energias renováveis eram complementadas com o acionamento de termelétricas. Contudo, pela questão da necessidade de descarbonização, houve uma corrida atrás de novas soluções mais sustentáveis, sobretudo naqueles setores chamados hard-to-abate, de difícil abatimento de emissões.
Com a pandemia de covid-19 e as novas informações relacionadas às mudanças climáticas globais, houve uma percepção em vários locais do mundo da oportunidade de fazer uma política pública de recuperação das economias, sobretudo na Europa, desenvolvendo novas tecnologias abatedoras de gases do efeito estufa. Nesse sentido, houve um esforço no mundo durante o último um ano e meio para buscar a viabilização do hidrogênio. Algumas pesquisas que já estavam acontecendo sobre essa fonte foram aceleradas.
Recentemente, publicamos o Plano Nacional de Energia (PNE 2050), no qual revisitamos o hidrogênio como uma tecnologia disruptiva. Apontamos um conjunto de desafios que precisam ser enfrentados para o desenvolvimento dessa tecnologia. Já o PNH2 reflete os conjuntos de experiências e a identificação de eixos que precisamos acelerar e aperfeiçoar, visando a construção de uma base necessária para o desenvolvimento de uma economia do hidrogênio.
Qual a importância desses seis eixos apontados no PNH2 para acelerar o desenvolvimento dessa economia de hidrogênio no Brasil?
Não vamos conseguir acelerar essa questão do hidrogênio se o Brasil não investir nesses eixos – a formação de recursos humanos; o desenvolvimento de tecnologias para uso e produção; a política de parcerias internacionais para desenvolver tecnologia e atrair investimentos; a incorporação do hidrogênio no planejamento energético; e o aperfeiçoamento do desenho institucional, legal e regulatório para fazer essa economia do hidrogênio florescer. Então, estamos tratando todas essas questões, dando prioridade para aquilo que permitirá ao Brasil aproveitar as oportunidades de curto prazo. Acelerar o desenvolvimento dessa fonte não é fazer mais um documento, mas sim criar as condições concretas para o setor.
O que estamos preparando é como estruturar uma economia pujante de baixo carbono, na qual o Brasil será um player global, com diferentes inserções e nichos de mercado. Esse é o esforço do governo brasileiro no qual a EPE está inserida. Estamos estruturando as ações do governo brasileiro para que esse cenário vire realidade, atraindo investimentos do setor privado.
Poderia falar brevemente também sobre os desafios tecnológicos e de custos na produção do hidrogênio?
Hoje, 70% do hidrogênio produzido no mundo vem a partir do gás natural. O carvão e o petróleo também respondem por uma fatia dessa produção. Há um grande e novo filão de mercado para rotas tecnológicas de hidrogênio de baixo carbono. Já existem algumas possibilidades e foi isso que a EPE explorou na nota técnica “Bases para a Consolidação da Estratégia Brasileira do Hidrogênio” [o Petronotícias publicou uma reportagem sobre o lançamento dessa nota, que está disponível neste link].
Um dos principais desafios é descarbonizar o processo de produção de hidrogênio. As rotas dominantes têm emissão de gases do efeito estufa, porque usam gás, carvão e petróleo. Atualmente, a rota da eletrólise da água tem uma participação muito pequena na produção de hidrogênio. No entanto, ela traz um conjunto de esperanças e expectativas, por conta do uso dos chamados excedentes de geração das fontes renováveis variáveis (eólica e solar) nesse processo.
Os desafios das mudanças climáticas globais e da recuperação das economias no pós-pandemia aceleraram o que se chama de “recuperação verde”. Houve um volume grande de investimentos visando um breakthrough tecnológico – isto é, o desenvolvimento adicional de tecnologia, sobretudo na rota de hidrogênio verde, a partir da eletrólise da água.
Isso gerou uma série de estudos sobre as expectativas de aumento da escala do eletrolisador e a viabilização da eólica offshore. O custo de eletricidade tem um peso alto na formação do custo do hidrogênio. A expectativa é que o desenvolvimento e o ganho de escala da eólica offshore pode gerar uma queda significativa do custo de geração e um excedente significativo de eletricidade. Esse não é o único, mas é o grande mote internacional, com a possibilidade de redução significativa de 50% no custo do eletrolisador. A expectativa de queda total de custo do hidrogênio verde seria de 60% a 70% até 2050. Assim, essa rota passaria a ser competitiva com a de gás natural ou de carvão – que hoje ainda são significativamente mais baratas, mas que geram emissões.
A rota nuclear para produção de hidrogênio também merece destaque?
A rota via nuclear é menos discutida, mas também é importante. Alguns países, como Canadá e Reino Unido, declararam que não é possível ter transição energética sem a participação da energia nuclear. A França ampliou a vida útil de suas usinas nucleares porque do contrário não conseguiria atender aos compromissos de redução de emissões assumidos no Acordo de Paris.
Temos olhado para a geração de hidrogênio como um subproduto da geração nuclear. Algumas rotas de pequenos reatores modulares nucleares (SMRs) têm essa característica. É algo bastante interessante. Temos conversado sobre isso com Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido e com as grandes empresas do setor. Recentemente, desenvolvemos um fórum com a Associação Brasileira para Desenvolvimento das Atividades Nucleares (ABDAN) sobre essa discussão do SMR [o Petronotícias publicou em agosto uma entrevista especial sobre o lançamento desse fórum].
Existem outras rotas importantes, como a do biogás, a de resíduos sólidos e a de biomassa. No caso do Brasil, em particular, existe ainda a rota do etanol – há grandes empresas investigando isso no país. O Brasil não está interessado só no hidrogênio verde. Não queremos abrir mão das oportunidades de investimentos nas outras rotas, desde que essas rotas foquem na descarbonização – que é uma necessidade para o êxito competitivo no futuro. Enfim, estamos com uma visão de estruturar uma economia de hidrogênio de baixo carbono, aproveitando todas as potencialidades que o Brasil possui nessa área.
Qual tem sido a participação da EPE na elaboração de programas e no estabelecimento de parcerias?
Nós acumulamos um volume de conhecimento e expertise nesse assunto. Hoje, do ponto de vista de conhecimento técnico e econômico, o Brasil não está atrás de nenhum país. Conseguimos negociar de igual para igual. Temos dado esse suporte aos ministérios de Minas e Energia e Relações Exteriores nas negociações de parcerias sobre o hidrogênio. Do ponto de vista técnico, estamos negociando de igual para igual. Participamos do processo de negociação de parceria e do desenho de programas.
Não queremos que esse esforço gere só dois ou três projetos de hidrogênio verde ou azul. Na verdade, queremos criar as bases para o desenvolvimento de uma economia do hidrogênio no país. Por isso, estamos estruturando as fundações para que o Brasil seja um player importante nessas cadeias globais de hidrogênio.
O Brasil já tem um conjunto de elementos que o qualificam para o desenvolvimento de uma economia de hidrogênio pujante. Algumas pessoas olham para outros países que estão acelerando a estruturação de projetos e acreditam que essas nações estão à frente do Brasil. Mas, na verdade, nosso país está fazendo uma estruturação sólida para ser um grande player na economia do hidrogênio.
De que forma a expertise e o conhecimento em outros setores podem contribuir no desenvolvimento da economia de hidrogênio no país?
O Brasil precisa aproveitar suas vantagens competitivas existentes para construir novas vantagens competitivas. Temos pensado em como aproveitar os investimentos em infraestrutura do passado, do presente e também do futuro, de forma que isso não seja incoerente com os investimentos de longo prazo na transição energética e na descarbonização.
Vou citar um exemplo hipotético: a construção de um gasoduto no Centro-Oeste pode permitir ao país dispor de uma infraestrutura no futuro para transporte de hidrogênio, aumentando a participação dessa fonte na matriz energética brasileira. Estamos pensando muito em como estruturar os investimentos que estão acontecendo hoje e como fazer um desenho de mercado e programas que facilitem a requalificação desses ativos no futuro. Esse talvez seja o maior trabalho que a EPE está fazendo junto com o Ministério de Minas e Energia e seus parceiros.