Por volta das 6 da manhã da sexta-feira 30 de abril, Shyam Bihari, de 45 anos, acordou seus vizinhos em Nova Delhi para que o ajudassem com sua mulher, Sarita, de 40 anos. Ela estava com muita febre e reclamando de dificuldade para respirar. Shyam e alguns de seus vizinhos logo começaram a procurar informações sobre para onde poderiam levá-la. Sem conseguir chamar uma ambulância, eles a colocaram num riquixá, os típicos carrinhos indianos, e partiram em busca de ajuda. As oito horas seguintes foram uma sucessão de diferentes portas de hospitais. Mesmo com o estado de Sarita piorando, a resposta dos funcionários responsáveis pela triagem de pacientes era a mesma: não havia vagas.
Quando chegaram ao Hospital Guru Teg Bahadur, uma instituição do governo com 1.500 leitos, ouviram, mais uma vez, que não poderiam internar Sarita. Mas a cerca de 25 quilômetros de distância de suas casas, decidiram parar de correr pela cidade e ficar esperando na frente do prédio, ao lado de dezenas de outras pessoas com dificuldade para respirar e um oxímetro preso a um dos dedos. Aos médicos que passavam saindo ou entrando do hospital, Shyam implorava para que internassem sua mulher. “Ela não consegue mais caminhar nem falar. Deixei meus filhos sozinhos em casa. Estou muito preocupado com a possibilidade de que ela morra”, dizia Shyam.
Passado algum tempo, Sarita não recebeu a chance de ser atendida numa cama, mas a de ficar do lado de fora da ala de Covid do hospital com uma máscara e um cilindro de oxigênio. Já era o meio da tarde da sexta-feira quando médicos se dirigiram a quem esperava por uma vaga dizendo: “Por favor, levem seus familiares para um outro lugar. Aqui não serão atendidos”. Todos ouviram, mas ninguém se moveu. Eles já tinham sido barrados em outros lugares, e o Guru Teg Bahadur era a última esperança.
“Quando a família Lal disse que queria dar o último adeus aos dois mortos, foi comunicada de que teria só dez minutos para sair do crematório. Era preciso ser breve porque havia muitos corpos”
Essa cena nas cercanias do hospital localizado no coração da capital indiana é um retrato da crise enfrentada pelo sistema de saúde no momento em que o país assiste à chegada da segunda onda da pandemia, muito mais letal que a primeira. Todos os dias, pedidos de socorro também circulam no Twitter, no Facebook e no WhatsApp. A população quer saber onde há vagas e onde se podem encontrar cilindros de oxigênio. Na primeira semana de maio, vários hospitais da capital postaram mensagens nas redes sociais dizendo que seus estoques de oxigênio estavam chegando ao fim, pedindo a cooperação da população e exigindo uma intervenção do governo.
O país como um todo está sendo impactado, mas nenhuma cidade se compara com Nova Delhi. As pessoas estão morrendo em suas casas, em ambulâncias, na frente de hospitais. Os números oficiais dão conta de cerca de 350 mortes diárias na capital e de mais de 3.500 em toda a Índia. Pelos dados do governo, o total de mortos pode chegar a 1 milhão até agosto. Analistas independentes acreditam que a tragédia pode ser muito maior por causa da subnotificação. A movimentação nos crematórios tem sido frenética.
Em um deles, localizado em Ghazipur, na região leste de Nova Delhi, corpos não param de chegar. São 200 por dia em um lugar com capacidade para cremar apenas 80. Funcionários reclamam de exaustão, de falta de material de proteção e até de madeira. Ram Pandit, um religioso que trabalha há dez anos no lugar, disse que não usa máscara e óculos porque precisa acender as piras e teme que o material de proteção pegue fogo. Pandit tem feito mais de 100 cerimônias diárias. Quando a reportagem de ÉPOCA visitou o crematório, Mohan Lal, de 18 anos, estava lá para homenagear seu pai e seu avô, ambos vítimas da Covid-19. Seus corpos envoltos em plástico estavam em uma das piras. Com 35 cremações ocorrendo simultaneamente, logo o local se encheu de fumaça. Quando a família Lal disse que queria dar o último adeus aos dois mortos, foi comunicada de que teria só dez minutos. Era preciso ser breve para que os funcionários preparassem o lugar para novos corpos. Os dramas de Shyam Bihari e sua mulher, Sarita, de Mohan Lal e de seus familiares são gotas num imenso oceano.
Com sua gigantesca população de mais de 1,3 bilhão de pessoas, a Índia se tornou o epicentro da pandemia, o que trará consequências não apenas internas, mas para todo o planeta — inclusive o Brasil. Os especialistas se preocupam com o aumento da circulação do coronavírus e o surgimento de uma variante indiana que parece ser particularmente contagiosa e pode contribuir para perpetuar a pandemia. Como aconteceu com a brasileira P.1, sua emergência é resultado da alta taxa de transmissão do coronavírus. Para o virologista Fernando Spilki, coordenador da Rede Corona-ômica, que sequencia e analisa o genoma do coronavírus em todo o Brasil, os indianos vão precisar cada vez mais de testes de diagnóstico, medicamentos, tudo em volumes colossais. “Isso terá um efeito sobre a oferta e o preço de insumos no mercado internacional, que vai priorizar o atendimento da Índia”, disse Spilki.
Diante desse quadro estarrecedor, teve início uma mobilização planetária de socorro que guarda algumas semelhanças com ações vistas apenas no princípio do surto epidêmico do sars-CoV-2. A começar pelos Estados Unidos, que reverteram parcialmente um veto à exportação de insumos necessários para a produção de vacinas pelos indianos e sinalizaram a intenção de mandar doses já prontas. Mais importante ainda, na quarta-feira 5 de maio, o governo americano prometeu apoiar a suspensão das patentes de vacinas contra a Covid-19. “Isso é uma crise de saúde global e circunstâncias extraordinárias exigem medidas extraordinárias”, disse, em nota, Katherine Tai, que ocupa o cargo equivalente ao de um ministro do Comércio nos Estados Unidos. “A administração (de Joe Biden) acredita, de forma veemente, em proteções de propriedade intelectual, mas, para acabar com essa pandemia, dá apoio a uma suspensão dessas proteções para as vacinas contra a Covid-19”, completou.
Ninguém espera uma mudança do dia para a noite. O governo americano confirmou que as negociações em andamento na Organização Mundial do Comércio (OMC) devem demorar. Caso, de fato, as patentes sejam suspensas, o aumento da produção global de imunizantes ainda vai depender da transferência de tecnologia dos laboratórios. De qualquer forma, a mudança de posição americana é uma vitória para a Índia, grande defensora da medida. A reviravolta também mostra a miopia do Itamaraty sob o governo Bolsonaro. A diplomacia brasileira se mantém contra a quebra das patentes.
Antes de qualquer efeito positivo de um novo acordo sobre a propriedade intelectual de imunizantes — que pode demorar ou até mesmo não acontecer —, a Rússia enviou para a Índia itens como respiradores e remédios, e entregará doses da Sputnik V. Nações como Reino Unido, França e Alemanha, além do rival Paquistão e da China, com quem as relações estão abaladas por incidentes militares recentes, despacharam insumos médicos, equipamentos e oxigênio — talvez o item mais necessário neste momento, como demonstra o caso de Sarita, a indiana que abre esta reportagem.
Tal esforço contrasta com cenários de crise vividos por outros países mundo afora. Episódios como os corpos de vítimas da doença nas ruas de cidades do Equador, em abril do ano passado, e a escassez crônica de oxigênio no Amazonas, em janeiro de 2021, receberam muita atenção da mídia internacional, porém pouca ajuda prática vinda do exterior. “Uma das razões para essa demonstração de solidariedade é a escala da pandemia na Índia. Estamos falando de mais de 1 bilhão de habitantes, e o colapso humanitário em uma nação com tamanha quantidade de pessoas é aterrador”, analisou Maurício Santoro, cientista político e professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Outro fator que pesa para a atenção dada à crise da Covid-19 na Índia é de natureza política. Trata-se de uma potência econômica e militar (inclusive no plano nuclear), vista por Estados Unidos e Europa como essencial na estratégia para conter a progressão da influência chinesa na Ásia.
Mesmo que as patentes de vacinas sejam quebradas mais adiante, autoridades sanitárias de diferentes países começam a traçar cenários mais pessimistas para o fornecimento de doses no curto prazo. Antes de melhorar, a situação do mundo como um todo pode piorar — e muito. Terceiro maior produtor global de farmacêuticos em volume, a Índia é também o maior fabricante de imunizantes contra a Covid-19. Três dos cinco principais em uso são licenciados para produção por empresas indianas: AstraZeneca/Oxford, Jansen/Johnson & Johnson e a americana Novavax. A russa Sputnik V também é fabricada por uma companhia indiana, a Dr. Reddy’s. Além disso, o governo é parceiro da empresa de biotecnologia Bharat Biotech no desenvolvimento da vacina Covaxin. As duas últimas foram recentemente barradas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que pediu apresentação de mais dados que comprovem sua segurança, e também pelas agências reguladoras americana e europeia.
“Como a Índia é o maior produtor de vacinas contra a Covid-19, o medo agora é que o governo local queira priorizar a imunização de sua população, bloqueando o suprimento global”
Embora a maior parte da produção de vacinas contra a Covid-19 na Índia esteja a cargo do setor privado, cresce a pressão por parte do governo e da opinião pública para que os imunizantes e outros insumos, como testes de diagnóstico, fiquem no país. Não ajuda o fato de apenas 2% dos indianos estarem imunizados. Apesar de o governo nacionalista e com viés autoritário do primeiro-ministro Narendra Modi negar que tenha obrigado as indústrias a reduzirem exportações, vários especialistas desconfiam que isso já aconteça. O consórcio internacional coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Covax, do qual os brasileiros também dependem, já deixou claro que atrasos são possíveis devido à explosão de Covid-19 na Índia.
O Covax tem um contrato com o indiano Instituto Serum, maior fabricante global de vacinas contra a Covid-19, da ordem de 200 milhões de doses. Para muitos, o Serum, onde é produzida a vacina da AstraZeneca/Oxford importada pelo Brasil, era a esperança de atender o Hemisfério Sul. Com a demanda na Índia em alta, essa perspectiva vai perdendo força.
“Tudo vai depender de como o governo indiano agirá nas próximas semanas. Se as indústrias forem obrigadas a atender primeiro a demanda interna, o mundo terá um grande problema e o Brasil poderá ficar sem receber vacinas nos prazos acertados”, afirmou Fernando Aith, professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), acredita que o Brasil depende da Índia não apenas no combate à pandemia. “Somos importadores de insumos indianos usados para produzir medicamentos. Vinte por cento dos genéricos do mundo são indianos”, disse.
Os pessimistas tiveram mais razão para se preocupar quando Adar Poonawalla, presidente do Instituto Serum, trocou a Índia pela Inglaterra no final de abril. Já em Londres, ele deu entrevista ao jornal Times e disse que se sentiu obrigado a deixar seu país devido a constantes ameaças e “a um nível sem precedentes e avassalador de expectativa e agressão” de gente poderosa do governo. Em março, a empresa já havia atrasado remessas da vacina da AstraZeneca/Oxford para o Brasil, o Marrocos e a Arábia Saudita.
O mais surpreendente é como a Índia chegou a essa situação. Durante a primeira onda do novo coronavírus, o país adotou medidas estritas para conter o avanço da doença, prevendo exatamente o impacto devastador que a pandemia poderia ter por lá. Entre março e maio de 2020, o governo Modi determinou uma série de lockdowns nacionais, inicialmente marcados pelas multidões de trabalhadores sazonais que tentavam deixar as grandes cidades.
No segundo trimestre do ano passado, o PIB indiano registrou queda de 23,9%, a maior da história, o que provocou críticas de especialistas dos quatro cantos do globo — eles viam o amplo lockdown nacional como algo extremo e muito danoso. De acordo com o Banco Mundial, a parcela da população que vive com menos de US$ 2 por dia na Índia passou de 4,7% para 9,8%. Em termos concretos, isso significa 135 milhões de pessoas. Por outro lado, houve o efeito das ações sobre a saúde dos indianos. Segundo estimativas do governo e de institutos privados, até 7 milhões de infecções e 70 mil óbitos podem ter sido evitados devido aos fechamentos estritos.
Com isso, os números começaram a cair mês a mês. Foi a senha para a tragédia. Máscaras passaram a ser itens cada vez menos vistos nas ruas, ao mesmo tempo que o premiê Modi não atuava para impedir grandes aglomerações em festivais religiosos — e realizava comícios reunindo centenas de pessoas. Alertas sobre uma iminente e devastadora segunda onda foram solenemente ignorados. “Nós baixamos completamente nossa guarda e presumimos em janeiro que a pandemia estava terminada, e as medidas de vigilância e controle passaram para segundo plano”, declarou K. Srinath Reddy, presidente da Fundação de Saúde Pública da Índia, em entrevista à rede americana de TV National Geographic. Recentemente, Tedros Adhanom, diretor da OMS, disse algo óbvio, mas necessário: o que acontece na Índia é um “lembrete devastador” do que a Covid pode fazer.